Cooperação entre UE e Líbia resulta em violações aos direitos de migrantes
Por volta das cinco da tarde de 4 de fevereiro, cerca de 70 milhas ao norte da Líbia, um avião de reconhecimento branco, com uma câmera na parte inferior, circundou uma embarcação improvisada que levava mais de cem migrantes desesperados tentando cruzar o Mediterrâneo para chegar à Europa.
Duas horas depois, graças a essas imagens de câmeras de vigilância, um barco da Guarda Costeira da Líbia alcançou os migrantes e ordenou que parassem, embora eles estivessem longe das águas do país. A seguir, os oficiais armados levaram os migrantes a bordo, espancaram-nos violentamente e os levaram de volta ao único lugar que eles não queriam ir: o gulag dos centros de detenção da Líbia.
Dois meses depois, em 8 de abril, um dos passageiros, um homem de 28 anos da Guiné-Bissau, pai de três filhos, chamado Aliou Candé, foi morto a tiros em Al Mabani, o centro de detenção mais infame da Líbia.
Eficiente e brutal, a captura desses migrantes no mar e seu confinamento em terra tem sido saudada por representantes da União Europeia como parte de uma parceria de sucesso com a Líbia em seus esforços de “resgate humanitário” em todo o Mediterrâneo. Para muitos observadores, no entanto, a verdadeira intenção dessa campanha conjunta não é salvar os migrantes do afogamento, e sim impedi-los de chegar às costas europeias.
Desde que a crise migratória começou em 2015 e centenas de milhares de pessoas começaram a cruzar o Mediterrâneo, as autoridades europeias têm contado muito com os líbios para conter o fluxo. A UE não só equipou e treinou a Guarda Costeira da Líbia, como também pressionou a organização marítima da ONU para que reconhecesse uma zona de busca e resgate maior, de modo que as autoridades líbias pudessem ter um controle mais amplo de sua costa.
O resultado dessa colaboração foi uma queda abrupta no número de pessoas que chegam à Europa pela rota do Mediterrâneo Central: foram cerca de 20 mil migrantes nos primeiros seis meses deste ano, em comparação com 70 mil no mesmo período de 2016. Sem o apoio da Frontex no reconhecimento aéreo, a Guarda Costeira da Líbia estaria procurando às cegas.
A Frontex há muito nega cooperação direta com a Líbia, um estado falido e, em grande parte, governado por milícias. Ela vem insistindo em que seu único objetivo é salvar vidas, e disse que só alerta diretamente às autoridades líbias sobre barcos de migrantes em caso de verdadeira emergência.
Um porta-voz da Frontex me disse: “O direito internacional obriga todos os navios a prestar assistência a qualquer pessoa encontrada em perigo … [a Frontex] nunca se envolveu em qualquer cooperação direta com as autoridades líbias”.
Porém, um conjunto cada vez maior de evidências demonstra o contrário.
No ano passado, por exemplo, a Lighthouse Reports, um observatório que opera na Europa, documentou 20 casos em que aeronaves da Frontex estiveram nas proximidades de barcos de migrantes posteriormente capturados pela Guarda Costeira da Líbia. Em uma dúzia desses casos, segundo concluiu a Lighthouse, a Frontex foi a primeira a identificar os barcos, o que significa que, segundo o direito internacional, a agência era obrigada a notificar não apenas a Guarda Costeira da Líbia, mas também o navio mais próximo – independentemente de ele pertencer a governos ou empresas – para que o resgate pudesse ser feito prontamente.
“Há um padrão claro”, afirmaram os pesquisadores da Lighthouse. “Os barcos em perigo são avistados, e os atores europeus se comunicam com a Guarda Costeira da Líbia. Não há aviso a embarcações próximas, sejam comerciais ou de ONGs, apesar de sua proximidade com situações de urgência onde os barcos estão em perigo em alto mar.” Segundo a Lighthouse, sua investigação mostrou que a Frontex estava “presente e vigilante”, enquanto pelo menos 91 pessoas teriam se afogado no Mediterrâneo.
Documentos divulgados em outubro, após uma solicitação de abertura de registros feita pelo grupo europeu de transparência FragDenStaat, mostram que a Frontex chegou a enviar as localizações dos barcos de migrantes diretamente à Guarda Costeira. Em uma troca de mensagens de WhatsApp em junho, a Frontex escreveu a um “Capitão da Guarda Costeira da Líbia”, dizendo: “Bom dia, senhor. Temos um barco à deriva [nestas coordenadas] … por favor, confirme que recebeu esta mensagem”. Autoridades enviaram recentemente ao The Outlaw Ocean Project os resultados de um pedido de abertura de registros, que indica que, de 1º a 5 de fevereiro, na época em que Candé estava no mar, a agência trocou 37 e-mails com a Guarda Costeira da Líbia.
Hussein Baoumi, pesquisador da Anistia Internacional na Líbia, disse não estar surpreso com a contínua negação pela Frontex de uma relação formal com a Guarda Costeira da Líbia. “Eles querem se distanciar dos aspectos mais sujos da contenção de migrantes”, disse Baoumi. “Mas isso não importa, eles estão cooperando e são cúmplices diretos.” A UE também negou financiar diretamente o gulag de prisões de migrantes na Líbia, e tem admitido constantemente a barbárie dessas prisões e pedido melhorias nelas. Mas não atendeu aos apelos para encerrar seu trabalho com a Líbia e tomar medidas para resgatar as pessoas que estão nas prisões de migrantes do país.
Embora a UE não pague pela construção de centros de detenção nem para equipar seus guardas, o dinheiro europeu financia praticamente tudo nesse sistema desumano, no qual os migrantes são rotineiramente torturados, estuprados, ilegalmente detidos e às vezes, assassinados. Por meio de drones e aviões da Frontex, a UE é a responsável por localizar as embarcações improvisadas e, por meio das autoridades italianas e maltesas, repassar essa informação à Líbia. Em seguida, os barcos comprados pela UE e operados pela Guarda Costeira líbia capturam os migrantes e os trazem de volta à costa.
Uma investigação do The Outlaw Ocean Project, uma organização jornalística sem fins lucrativos com sede em Washington, descobriu que verbas da UE e dos países membros, às vezes encaminhadas por meio de organizações humanitárias, financiam a maior parte do que acontece depois disso.
Esse dinheiro comprou os contêineres que funcionam como escritórios portuários para a equipe da Guarda Costeira da Líbia e os tablets usados pelos trabalhadores humanitários que contam os migrantes quando eles desembarcam em Trípoli. Também paga muitos dos ônibus usados para transportar os migrantes do porto aos centros de detenção, bem como os cobertores, roupas de inverno e chinelos que eles geralmente recebem na chegada. Os banheiros de alguns centros de detenção, bem como os chuveiros, vasos sanitários, sabonetes, kits de higiene e papel higiênico, foram comprados com dinheiro da UE.
O mesmo vale para os colchões onde dormem os migrantes detidos. Verbas da UE pagaram as caminhonetes que as autoridades de migração da Líbia usam para procurar migrantes se eles escaparem da detenção ou quando entrarem na Líbia pelo sul, através do deserto do Saara. A UE também se comprometeu a fornecer ambulâncias para levar ao hospital os detidos que estiverem doentes ou feridos. E quando os migrantes morrem – na praia ou em detenção – o dinheiro da UE geralmente paga pelos sacos para corpos e para treinar os funcionários líbios em como lidar com os cadáveres de forma religiosamente respeitosa.
Grande parte desse financiamento é bem-intencionado, e inclusive salva vidas. Mas é inegável que a UE e seus países membros sustentam financeiramente o sistema na Líbia, pelo qual milhares de migrantes estão sendo capturados e mantidos em condições terríveis.
E como a Frontex é a ponta da lança, seu papel e a legalidade do seu envolvimento começam a receber mais atenção.
Uma investigação recente do Parlamento Europeu produziu uma longa lista de acusações contra a agência: ela teria feito vista grossa às violações dos direitos humanos cometidas por guardas costeiros de países europeus e de países parceiros na África; seu próprio sistema interno de recebimento e tratamento de denúncias de má conduta seria um fracasso; e o chefe da agência, Fabrice Leggeri, não agiu durante quatro anos de advertências feitas pelo responsável por direitos humanos da própria agência.
Numa entrevista ao The Outlaw Ocean Project no final de outubro, um alto funcionário da Frontex disse que Leggeri tinha feito um jogo calculado e hipócrita durante anos, insistindo em que fossem apresentadas “evidências” de má conduta por parte das agências de fronteira da UE antes de tomar qualquer atitude, ao mesmo tempo em que não garantia que as queixas desses abusos potenciais seriam investigadas de forma ativa.
Esse alto funcionário já não considerava que a Frontex estava cumprindo sua obrigação mais essencial: garantir que os direitos de algumas das pessoas mais vulneráveis do mundo fossem respeitados. Ele afirmou que as emoções na Europa com relação ao controle da migração, raivosas e voláteis, comprometeram a independência da Frontex.
“A influência da política é um problema quando você está lidando com a questão dos direitos humanos fundamentais”, disse ele. “Mesmo que a participação da Frontex no retorno de migrantes à Líbia seja indireta, ela pode estar descumprindo as leis da UE.”
Segundo ele, Leggeri e seus assessores mais antigos “não tinham interesse”. “Não importava o que você dissesse. Eles não queriam entender.” Leggeri recusou vários pedidos de entrevista.
Este ano, os migrantes estão movendo dois processos históricos contra a Frontex perante o Tribunal de Justiça da União Europeia, a principal autoridade judiciária do bloco. A primeira ação, iniciada em maio, acusa a Frontex de, há muito tempo, descumprir suas obrigações de denunciar e impedir abusos criminosos contra migrantes que buscam asilo na Europa. A ação alega que dois deles – um jovem congolês de 17 anos, chamado Jeancy Kimbenga, e uma mulher do Burundi que pediu para permanecer anônima – faziam parte de um grupo de 13 pessoas que foi detido pelas autoridades gregas depois de chegar à ilha de Lesbos. Eles dizem que foram transferidos à força para um navio da Guarda Costeira e trazidos de volta ao mar antes de ser abandonados em um barco salva-vidas e depois, enviados de volta à Turquia.
Indiscutivelmente, as alegações da segunda ação, iniciada em outubro, são ainda mais prejudiciais à Frontex. Alega-se que uma família síria, com quatro filhos pequenos de idades entre 1 e 7 anos, foi deportada da Grécia em 2016 sem ter tido acesso a um procedimento de asilo, e foi devolvida à Turquia num voo organizado pela Frontex, com as quatro crianças pequenas sendo separadas dos pais enquanto funcionários da Frontex observavam. A família foi detida ao desembarcar na Turquia e agora mora no norte do Iraque.
Essas ações marcam a primeira vez que a Frontex é processada no Tribunal de Justiça da União Europeia.
Em um relatório publicado no verão passado, a Human Rights Watch fez uma acusação ampla à atuação da Frontex, sua cultura organizacional e sua liderança. “A Frontex tem deixado repetidamente de tomar medidas eficazes quando lhe são apresentadas alegações de violações dos direitos humanos”, disse Eva Cossé, pesquisadora da Human Rights Watch para a Europa Ocidental. “Seu rápido crescimento como agência executiva da UE, com mais poderes, financiamento e responsabilidades jurídicas, torna ainda mais urgente a implementação, pela Frontex, de ferramentas eficazes para salvaguardar os direitos fundamentais.”
Criada em 2004, a Frontex tem atualmente um orçamento de mais de meio bilhão de euros e emprega mais de 1.400 funcionários, incluindo uma força uniformizada de cerca de 600 agentes. O órgão é dirigido por um conselho de administração composto por representantes dos 25 países membros da UE e dois representantes da Comissão Europeia. Em tese, existe uma série de mecanismos pelos quais a Frontex poderia ser responsabilizada, mas ela raramente, ou nunca, enfrentou qualquer punição verdadeira. Mesmo para um membro do Parlamento Europeu, é difícil obter informações básicas da agência. “Realmente temos problemas com a falta de transparência”, disse Tineke Strik, holandesa que é membro do Parlamento Europeu.
Em uma análise da história do trabalho da Frontex, a Human Rights Watch observou que, segundo seus próprios estatutos, a agência tem o dever de suspender ou encerrar suas operações em países que tenham cometido abusos graves. Em toda a sua história, disse a Human Rights Watch, a agência só fez isso uma vez, na Hungria, após uma decisão de um tribunal europeu.
Leggeri, o diretor executivo da Frontex, foi alvo de vários protestos pedindo sua demissão nos últimos meses. Recentemente, manifestantes se reuniram em frente à sede da Frontex em Bruxelas, pedindo a extinção da agência. Em uma carta à sua equipe, Leggeri, que trabalhou no controle da migração como membro do Ministério do Interior da França, chamou os protestos de “campanha de ódio” e prometeu tomar providências jurídicas.
Em junho, a Human Rights Watch enviou aos principais funcionários da agência o que considerou ser uma prova de má conduta grave cometida ou negligenciada pela Frontex em três países europeus. Ainda não obteve resposta. A organização acusou a agência de fazer um jogo semântico cínico ao evadir a responsabilidade por abusos que ocorrem tanto no Mediterrâneo como no Mar Egeu.
“Ao longo dos anos, a Frontex confiou no seu papel de coordenação e na falta de autoridade executiva para se esquivar da responsabilidade pelos direitos humanos”, escreveu a Human Rights Watch. “Em dezembro de 2020, Fabrice Leggeri disse ao Parlamento Europeu que não havia provas do envolvimento da Frontex em abusos no Mar Egeu e que apenas os países membros tinham autoridade para tomar decisões operacionais, o que implica que a Frontex não poderia ser responsabilizada.”
Sob pressão, a Frontex ordenou uma revisão interna das suas operações. Seus próprios investigadores ofereceram uma crítica fulminante aos sistemas da agência para relatar problemas em suas fileiras. Os investigadores disseram que a agência precisava reconhecer suas falhas e recomendaram uma revisão de sua cultura no que diz respeito a responsabilidades em identificar e agir em relação a violações dos direitos humanos. Sugeriram que a Frontex tivesse o cuidado de gravar em vídeo o trabalho de controle que está sendo realizado pelos países membros da União Europeia e preservar essas gravações para investigação.
Em junho, uma organização de direitos dos migrantes, que fez parte de um conselho independente da Frontex durante anos, retirou-se do grupo. Dizendo se sentir ignorada e marginalizada, a Platform for International Cooperation on Undocumented Migrants afirmou que perdeu a confiança no papel da Frontex em uma “sociedade civil”.
Em outra frente, em janeiro, o Organismo Europeu de Luta Antifraude abriu uma investigação sobre a Frontex. Reportagens disseram que ele estava examinando alegações de fraude, casos de tratamento ilegal de migrantes e questões de assédio no local de trabalho, mas as alegações específicas não foram divulgadas. Tanto a Frontex como o Organismo Europeu de Luta Antifraude confirmaram que havia uma investigação, mas não deram mais detalhes. “[Eles] estão agindo com muito cuidado”, disse Strik. “Mas eu falei com eles em agosto e eles esperam terminar em alguns meses.”
O trabalho da Frontex com a Líbia, é claro, faz parte de um esforço europeu muito maior e mais caro visando terceirizar o controle da imigração, delegando-o a países. A UE enviou bilhões para Líbia, Níger, Tunísia e outras nações, aparentemente para ajudá-las a melhorar suas condições e, assim, limitar a necessidade que as pessoas têm de fugir. Mas dezenas de milhões desses dólares foram usados para endurecer a legislação sobre imigração e capacitar as agências de repressão.
Em julho, a Anistia Internacional publicou o seu mais recente relatório, de conteúdo terrível, sobre a situação dos migrantes na Líbia. Observou-se que a Guarda Costeira do país costuma ser alertada pela agência sobre os migrantes que tentam chegar à Europa, e depois corre para interceptar os barcos deles e capturá-los – às vezes disparando contra embarcações pequenas ou improvisadas, ocasionalmente fazendo com que virem. Em fevereiro, por exemplo, a Guarda Costeira atirou contra uma delas, perfurando-a e causando seu afundamento. Cinco pessoas morreram afogadas enquanto membros da Guarda Costeira gravavam vídeos com seus telefones celulares, disse o relatório.
A Frontex certamente está ciente das antigas preocupações em relação à Guarda Costeira da Líbia, que ela tem ajudado regularmente. Sabe-se que essa Guarda Costeira – na verdade uma miscelânea de autoridades portuárias locais – há anos trabalha com as milícias do país, muitas das quais estão envolvidas no tráfico de pessoas. De fato, o chefe da agência governamental líbia que supervisiona a repressão aos migrantes admitiu abertamente em uma série de entrevistas recentes que existe corrupção dentro das fileiras da Guarda Costeira.
O alto funcionário da Frontex que conversou com o The Outlaw Ocean Project disse que eles deixaram claro que qualquer ação conjunta com a Guarda Costeira da Líbia era impensável, em parte porque a Europa “não tinha a menor ideia” quanto à integridade daqueles que dizem pertencer à Guarda Costeira. As coisas estavam simplesmente muito ruins e pouco transparentes na Líbia, um país dividido e violento, que ainda luta para sair de anos de guerra civil.
“É impossível”, disse o funcionário, “fazer qualquer confirmação de quem é quem”.
Foi a esse sistema que a Europa entregou Aliou Candé em fevereiro. Hoje, seu corpo está junto a milhares de outros em um cemitério de migrantes no leste de Trípoli, a meio continente da família que ele deixou para trás. Enquanto isso, milhares de outros como Candé, prisioneiros sem nome de um sistema falido que a UE ajudou a criar, aguardam um destino incerto.
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